Artigo: “A sedutora
história da leitura”
Elias Thomé Saliba
Historiador, Professor da USP e autor dos livros Raízes do
Riso (2002) e As
Utopias Românticas (1994)
Um livro só começa a existir quando um leitor o abre. Esta
afirmação resume o novo olhar dos historiadores em relação à leitura. Durante
muito tempo eles mantiveram frente à leitura uma atitude linear, supondo-a
invariável, natural a todas as pessoas de todas as épocas. Hoje, inúmeras
pesquisas nos ensinam a ver no gesto trivial de ler um texto, uma variação
quase infinita, possível de ser reconstituída nos diversos momentos da
história.
Claro que a difusão do "livro com páginas" tal
como o conhecemos, assim como a primeira revolução na história do livro - a
invenção da imprensa no século XV - provocaram um alargamento enorme do número
de leitores. A segunda grande mutação nas maneiras de ler ocorreu no final do
século XVIII com a passagem de hábitos intensivos de leitura - a leitura
constante e repetida de textos de caráter religioso (a Bíblia era o grande
best-seller!) – para hábitos extensivos de leitura do leitor moderno, que (mal)
lê vários livros, ávido por novidades.
Mas a leitura "intensiva" não chega a desaparecer,
pois o advento do romance coincidiu com a disseminação de modos emocionais de
leitura. Rousseau exigiu que o seu A Nova Heloísa fosse "lido tão
intensamente quanto a Bíblia", o que realmente ocorreu, provocando nas
leitoras desmaios, choros convulsivos e, no limite, suicídios. Com os olhos de
hoje, distraídos pelo caleidoscópio de imagens nas telas, fica difícil
concebermos a força desta paixão
incendiária provocada pela leitura.
Sedução pela leitura? Ler em público era, antes do advento
do marketing e da noite de autógrafos, a melhor maneira de um autor obter
público para seus livros. O poeta Dylan Thomas, em alto estado etílico,
encantava com sua belíssima poesia cantada nos bares, coisa só percebida na
língua original.
Mas, na inspirada tradução de Ivan Junqueira, os leitores
podem ter uma idéia:
Em meu ofício ou arte
taciturna/
Exercido na noite
silenciosa/
Quando somente a lua
se enfurece /
Trabalho junto à luz
que canta/
Não por glória ou
pão/
Nem por pompa ou
tráfico de encantos/
Nos palcos de marfim/
Mas pelo mínimo
salário/
Do seu mais secreto
coração.
Difícil imaginar tais
versos, como revelam os arquivos, reproduzidos por inúmeros leitores que os
enviavam, junto com as flores, às namoradas distantes.
Difícil, mas não impossível, já que no final do século XIX o
público leitor atingiu a alfabetização em massa. A "era de ouro" da
leitura foi também a última a ver o
livro ainda imune à competição com outros meios de comunicação - TV, internet e
todo o sofisticado aparato da mídia eletrônica do século XX. Ler numa tela não
é o mesmo que ler num livro com páginas.
Estaríamos hoje diante de uma terceira revolução da leitura?
Independente da imprevisível resposta, esta recente história da leitura empolga
e surpreende. Porque é a história de uma prática ligada talvez ao mais espetacular instrumento utilizado pelo
homem.
Que afinal, vem confirmar o que Jorge Luis Borges disse
certa vez, de forma definitiva, sobre o livro: O microscópio e o telescópio são
extensões da nossa visão; o telefone é a extensão da nossa voz; em seguida,
temos o arado e a espada, extensões do nosso braço. O livro, porém, é outra
coisa:
o livro é uma
extensão da nossa memória e da nossa imaginação.
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